Medicamentos descartados são falsificados e continuam abandonados em terreno
Caixas de papelão foram abertas; curiosos podem ter espalhado frascos
Na manhã desta terça-feira (9), cerca de 19 horas depois de serem encontrados, dezenas de caixas de medicamento descrito como Immune Globulin Intravenous 5g% seguem jogadas em terreno que fica em frente a creche localizada no Jardim Botafogo, em Campo Grande.
O recolhimento é de responsabilidade das Vigilâncias Sanitária e Ambiental do município, segundo informou a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde). Embora a pasta tenha sido informada sobre o descarte pelo Campo Grande News no início da tarde de ontem (8), os remédios seguem exatamente onde estavam. Além disso, uma das duas caixas que ainda estava fechada foi aberta e revirada, provavelmente por curiosos.
Fornecedor da Cirúrgica MS, empresa que distribui medicamentos para a rede pública e privada do Estado, Bruno Girelli entrou em contato hoje com a reportagem para expressar preocupação com a demora do recolhimento. Ele alerta que o produto é falsificado e pode representar risco à saúde de quem o consumir.
Falso - Um comunicado oficial disponível no site da Bayer, farmacêutica cuja logomarca aparece nas caixas individuais e no frascos do medicamento, alerta que a empresa nunca o produziu nem o comercializou. Veja o texto, disponível desde 2022:
"Comunicamos que a Bayer S/A, por meio de reclamação de mercado recebida pelo seu SAC, tomou conhecimento de que o produto Gamimune N.5% está sendo comercializado com sua logomarca, o que trata-se de fraude, uma vez que que referido produto nunca foi produzido, importado, nem tampouco comercializado pela empresa", avisa a empresa.
Imagens que acompanham o comunicado, com a intenção de facilitar a identificação do produto fraudulento, foram comparadas por Girelli. Ele checou inclusive o lote e constatou que se trata da mesma falsificação.
Dentro de caixa, frascos estão intactos (Foto: Henrique Kawaminami)
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) também emitiu comunicado, no mesmo ano, determinando a apreensão e proibição de venda do mesmo suposto medicamento:
"Anvisa determinou, por meio da Resolução RE 245, de 27 de janeiro de 2022, a apreensão e a proibição da distribuição, da comercialização e do uso de unidades falsificadas do lote IVL1915/50 do medicamento Inmunoglobulina G Endovenosa", registrou em nota.
Caso sério - O fornecedor explica que "o caso é sério", já que o medicamento falsificado chegou a ser analisado em laboratório brasileiro e apresentou composição diferente da que diz ter. "Da forma que está, se for o mesmo que os falsificados já analisados em Estados como o Paraná, podem conter metronidazol, um medicamento anti-infeccioso indicado para o tratamento de giardíase, amebíase, tricomoníase, vaginites e outras infecções".
Frascos estavam embalados em caixa de óleo vegetal (Foto: Henrique Kawaminami)
Girelli suspeita que as caixas individuais, embaladas em caixa de óleo vegetal possivelmente para não terem origem identificada, foram deixadas no terreno baldio a mando de "algum distribuidor que tinha em estoque e venda para hospitais ou até a rede pública", diz.
De acordo com o que acompanha, milhares de unidades falsificadas têm sido apreendidos pela Polícia Federal em outros Estados, inclusive no Paraná, onde a Polícia Civil iniciou operação, em setembro do ano passado, para prender 16 pessoas envolvidas em fraude de licitação para comprar o medicamento ilegal.
Em Mato Grosso do Sul, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal apreenderam milhares de frascos do medicamento no ano passado que, se vendidos, renderiam milhões de reais (leia mais nas matérias relacionadas ao fim desta publicação).
Ninguém viu - O local de descarte na Capital é uma área grande, cercada por galpões e duas residências. Na vizinhança, não havia ninguém em casa para comentar o aparecimento das caixas. Nenhum dos locais possui câmeras de segurança que poderiam ter flagrado o ato, que é crime ambiental passível de aplicação de multa que varia de R$ 100 a R$ 15 mil, conforme informou a prefeitura.
Uma funcionária da creche que fica próxima ao terreno baldio, também moradora do Jardim Morenão, afirmou suspeitar que o descarte tenha sido feito na segunda-feira, já que o conteúdo não estava molhado. "Choveu na região na sexta-feira e no fim de semana. Hoje, não", disse. Ela preferiu não ser identificada.
O verdadeiro - O Immune Globulin, conhecido como Imunoglobulina Humana, é um fármaco autorizado pela Anvisa no Brasil, desde que distribuído por farmacêutica autorizada e atendendo a todas as exigências legais para comercialização. A versão original é indicada para tratamento de leucemia, doenças autoimunes, e para pacientes recém-transplantados, por exemplo.
Apreensão feita em 2023; caixa para disfarçar conteúdo é igual a encontrada em 2024 (Foto: Divulgação/PRF)
É um medicamento de alto custo, diz Girelli. "Pacientes com câncer chegam a necessitar de 30 ampolas para restabelecer a imunidade", ele exemplifica.
Quanto aos valores de comercialização, ele confirma que o da farmacêutica autorizada podem chegar a R$ 2,2 mil cada frasco, e que os falsificados chegam a ser vendidos por cerca de R$ 1,5 mil. "Isso sem ter efeito, já que não contém a mesma composição, conforme as análises laboratoriais", acrescenta.
Investigação - Resta saber quem estava comercializando o produto e descartou parte ou todo o estoque restante. O Campo Grande News procurou nesta terça-feira a Decat (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Ambientais e de Atendimento ao Turista), mas não recebeu informações sobre investigações em curso.
No ano passado, quando a Polícia Federal informou apreensão do mesmo medicamento em Mato Grosso do Sul, a reportagem fez o mesmo questionamento sobre os responsáveis pelo contrabando, já se suspeitava que o medicamento foi produzido na Bolívia e não tinha nota fiscal ou autorização de importação. Na época, a resposta foi que as informações eram sigilosas, para que a divulgação não atrapalhasse o andamento das investigações.
Fonte: Campo Grande news